Mais uma lua brilhava sua fúria no final da rua 25. Ela estava pronta para sua jornada noturna, que se iniciava a cada pôr, ainda não sabia se do sol ou de sua vida. Os olhos perscrutavam os becos, as narinas a procura do aroma que tanto a enjoava de desejo. Cada músculo fervia pelo néctar quente de sua perdição.
Há muito aprendera a conviver com o que lhe fora imposto. Mas a repugnância persistia como um animal, antes solto, avassalador, agora aprisionado em sua alma, domável. Nada seria como antes, já aceitara.
Em tempos rotos sua vida cintilava como o rei dourado, que reina na abobada azul e que decidira num dia cinzento ser seu eterno inimigo. Sob seu trono, o universo, bateu seu destro e jorrou a luz prata sobre o destino infeliz daquela pobre criatura.
Cercada de amigos e familiares, tinha sonhos comuns, pouco invejáveis. Aos quais daria tudo para tornar a tê-los. Apreciava o perfume das flores, o bater de cada borboleta à vida. Imaginava-se em um casulo, do qual um belo e formoso rapaz a libertaria, levando-a a brincar com ele de ser feliz. Teria uma linda família. Quatro filhos, dois meninos e duas meninas. Eles teriam de ser mais velhos, para protegê-las do mundo na ausência dos pais. Envelheceria em paz com o homem de seus sonhos. Teria netos... os netos... os risos infantis pela casa, pelo campo, no carro e ao fundo, no telefone.
Estes pensamentos sempre vinham acompanhados de uma incomoda lágrima. Finalizava sempre com a palavra ilusão. Nossa, como ela era puritana! Inacreditável! Hoje, para ela, era quase inadmissível tantos princípios arcaicos. Sem contar com o machismo impregnado em sua educação. O qual não fazia mais parte dela. Praticamente fugiam da memória as feições de seus progenitores. Aquela história mesquinha e fugaz que a corroia de desespero por nunca mais poder ser aquela jovem idiota.
Todos se foram. Um a um. Ela se tornara alguém sem passado ou futuro. Apenas existia o presente, a sobrevivência. Ninguém podia fazer nada, dependia só dela. O certo é que existiam pontos positivos. Transformara-se num ser superior, querendo ou não. Precisava se privar de muito, mas outras versões do real se fizeram presentes. Como os sentidos aflorados. Detalhes que passavam despercebidos eram saboreados com ardor. Um exemplo foi quando fez amor pela primeira vez após a nova condição. As sensações multiplicadas em mil. Com essas reflexões se acalmava.
Algo lhe chamou a atenção. Vislumbrou a lua, enquanto uma mecha de cabelo roçava com suavidade a bochecha. Virou-se rapidamente, como por instinto, e o identificou na outra esquina. Ele não a veria, nem tomaria ciência dos acontecimentos. Há anos era cada um por si. Azar de quem não tinha percebido isso ainda. O mundo estava um caos e a realidade estampada em livros de ficção.
Começou a se deslocar em passos delicados, determinados, como um felino faria. Autodidata, tinha adquirido estes movimentos conforme os anos se passaram. Seus olhos vidrados, hipnotizados pelo que viria. A língua umedeceu o lábio superior. As veias saltaram. Verdes. Azuis. Bombas. Não sabia se dela ou dele. Era enlouquecedor.
Ele tinha a vida e ela a tomaria em doses homeopáticas.
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